Marina
O açúcar acabou, são quase oito horas e a empregada está de mau humor. Em cima da mesa, vê a lancheira do menor. Liga pro celular do marido, pede que dê dinheiro pro pequeno comer, toma café amargo, engole duas Aspirinas. Quando espirra, borra todo o rímel e tem que refazer a maquiagem do olho esquerdo. Toma duas colheres de xarope. Tenta vestir a calça azul, percebe que não cabe. Demora dez sólidos minutos até achar a chave do carro. Sorri pro porteiro e manda um “Oi, tá boa?” cheio de energia para a vizinha de andar que passa com o cão, enquanto reza pra outra não explicar. Encara o trânsito num carro sem rádio e sem ar, caminha sentindo o joelho até a entrada principal, ouve a algazarra, mostra o crachá. Toma o café cerimonial de abertura dos trabalhos, folheia o catálogo de eletrônicos que a Nice vende e engole dois Dorflex e uma Aspirina. Revisa a matéria que já devia ter sido entregue e sai pra fumar a cada meia hora, porque não dá, não dá. Monitora a empregada pelo telefone, contribui com a lista do presente do Valtão, desmarca a terapia de amanhã e compra o presente da sogra na hora do almoço. Finge não entender a cantada do Siqueira e esfrega a perna na perna do Bruno na cafeteria, who knows? Atende os telefonemas do povo da sucursal do Rio, toma um antiácido e manda o povo da sucursal de Porto Alegre pro diabo que os carregue. Retoca o batom, sente o joelho que incomoda, toma mais dois Dorflex, fala com o filho elo Messenger e com a filha pelo Twitter. Termina o outro artigo, fala pra mãe que está ocupada e liga depois e vai pra reunião no sexto andar, desiludida da vida. Desenha corações na agenda durante a reunião e lembra que tem que comprar papel crepom pro trabalho de artes da filha. Vê o Diego vindo em sua direção pelo corredor e entra rápido na baia da Sueli para não ter de cumprimentar. Finge que acredita que o marido tem reunião até tarde de novo e finge que fica triste. Para de contar os cafezinhos no oitavo, toma mais um, percebe que o editor está olhando pra ela com cara de “E aí?” e começa a escrever o editorial por que a mula não vai mesmo fazer. Ouve a fofoca mais recente, decide comprar do catálogo uma lanterna pro menor e um radinho pra maior, lasca uma unha e xinga o servidor que deu pau. Toma três Aspirinas, pede pra tia do café ir comprar um sanduíche e o tal do papel crepom, sai pra fumar na chuva e esbarra naquele escritor bonitão que quase nunca vem à redação. Baba maionese na blusa, acha que levou uma cantada do Álvaro, mas não tem certeza, e separa uma briga das crianças pelo telefone. Por via das dúvidas, segue o conselho da Lu e toma dois Saridon. Sai pra fumar e se espanta porque já é noite, pede pra mãe coordenar a ida das crianças pra cama e revisa o editorial. Come um risole e uma bala de ovo na bombonière com a Marta, fuma mais um cigarro, toma outro café, adianta o artigo de amanhã e toma mais duas Aspirinas e um quarto de Dormonid, porque assim já chega em casa balão. Retoca o batom, pega o casaco e enfrenta a 23 de Maio, sem trânsito, hora boa. Verifica que, de novo, o vizinho do 704 estacionou o carro torto e prevê a luta que vai ser pra manobrar. Espera o elevador, sonha com um bife, mas sabe que só tem sopa. Ao descer do elevador, encontra a vizinha, que, cheia de energia, manda um: “Oi, tudo bom?”.
Sente vontade de pôr a mão no ombro da outra e explicar.