As boas histórias

Que as boas histórias nos vejam e nos escolham. Que as boas histórias nos assombrem e nos guardem, que elas fiquem. Que elas saibam nossos nomes, não nos faltem, não nos excluam, não nos escapem por entre os dedos. Que encontrem pela frente revisores gentis, editores gentilíssimos, prazos gentilérrimos (os revisores gentis deixarão passar). Que as boas histórias nos levem para tomar café num lugar metido a besta. Que elas nos emprestem dinheiro para o papel sulfite, porque é preciso ler cada uma delas no papel, ainda que de quando em vez. Que elas nos deem coragem na hora de bancar a publicação do livro, porque agora somos criaturas independentes e corajosas. Que elas nos chamem pelo nome, ah, melhor ainda, pelo apelido, aquele primeiro, aquele um, o apelido que a madrinha nos deu. Que elas mirem em nosso peito e nos recolham em seus braços macios quando adormecemos no sofá, cansados demais. Cansados demais. Que sejam boas para nós. Mas não muito. Que venham fácil. Mas não muito. Que nós possamos lutar um bocadinho por elas, um pouquinho de luta é bom, sempre. Que entendam nosso dialeto secreto, adivinhem o cheiro do nosso suor, entendam a reclamação da gata laranja que deseja nossa atenção nela e não nas boas histórias. Que o colo morno das boas histórias nos sirva de abrigo quando todo o resto está tão ruim. Que elas não sejam nem suas, nem minhas, mas que pulem de galo em galho, como macaquinhas. Que as boas histórias compreendam nosso medo, nossa dor, nosso assombro, nossa paralisia. Que elas entendam que o dicionário tacado na parede é uma necessidade, às vezes. Que elas soprem nossos dodóis, coloquem ataduras em nosso tornozelo torcido, passem loção na queimadura de sol em nossos ombros. Que as boas histórias gostem da nossa camisa de florzinha, da nossa taça de vinho, que elas venham só pra ver isso de perto. Que as boas histórias intervenham com a Divina Providência para que alguém nos mande alunos e traduções, porque as contas precisam ser pagas enquanto bolamos historinhas novas. Que as boas histórias entendam que estamos apaixonados e que, também por isso, os pronomes nos faltam, abundam adjetivos, sobejam clichês. Que as boas histórias gostem da forma como batemos as pestanas para nossos objetos de amor, crentes de que estamos fazendo ficção. Que gostem do cheiro de nosso café com leite, da voz do George Lopez que nos faz rir enquanto trabalhamos, da nossa unha cor-de-rosa lascada na ponta. E que as boas histórias entendam de montar a impressora, porque nós, ah, nós somos umas bestas. Amém. 

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

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