Molho Lola.

Minha avó foi uma grande cozinheira, como sempre cabe às avós.

Lembro de quase tudo o que fazia. Comida sem pressa, feita no fogão de lenha. Comida de dia inteiro.

Tive a felicidade de morar com minha avó durante dois anos de minha infância e passar todas as férias escolares que me lembro em sua casa, em uma pequena cidade do interior do Paraná. A cozinha era o verdadeiro coração da casa. Era ali que as visitas ficavam jogando conversa fora por horas e ali que o espírito de família se fazia presente sempre.

Nos dias de frio intenso, onde tudo amanhecia branco por causa da geada, era na cozinha que nos aquecíamos. O fogão alimentado constantemente por lenha sequinha, tirada de um banco de madeira, mantinha o ambiente em uma temperatura suportável. Era um fogão grande, construído sob medida em  um canto da cozinha. Ao lado da chapa, tinha um lugar onde eu sentava e permanecia aquecido mais que todos.

As manhãs de inverno eram as manhãs de pinhões na chapa, dos pães com banha e do café com leite quentinho. Minha avó costumava tomar café com leite em uma grande caneca, misturado com farinha de milho biju, coisa que eu achava medonha. Se fechar os olhos e me concentrar um pouco, ainda posso ouvir o barulho do sapé pegando fogo para iniciar os trabalhos no fogão logo de manhã cedinho.

Os almoços eram o que chamam hoje de Confort Food, com nada de light. Torresmo, costelinhas de porco, ovos fritos, feijão com mistura, galinha caipira ensopada, quirerinha e o virado de minha avó, o melhor virado que alguém pode ter conhecido, podem apostar. De noite, se o frio pegasse demais, era feito uma sopa, o Mingau de Bugre, com muito alho e ovos pochês. Os outros ingredientes, eu não lembro. Um dia, eu ainda resgato a receita desta sopa tão reconfortante.

E claro, tinha o Molho de Pimenta da Lola (apelido de minha avó). Um molho que era de comer rezando. Minha avó guardava a receita a sete chaves. Quando fazia, era para distribuir para a família inteira e metade da cidade. Um acontecimento.

O molho de pimenta de minha avó era suave, aromático, dando um toque em tudo o que você pode imaginar. Meu avô misturava no feijão, coisa que eu achava medonha também (hoje sou eu que misturo). Era um molho que dava para comer de colher, eu juro para vocês. E minha avó manteve em segredo, durante exatamente uma vida.

Quando ela adoeceu, ficou um tempo em nossa casa, aqui em Curitiba. De tanto eu pedir a receita, um dia ela concordou em me passar.   Pouco tempo antes de nos deixar, escrito em um papel surrado, sem quantidades exatas (sim, seria demais passar o pulo do gato), mas ainda com  a sua letra quase desenhada e com o mesmo carinho de sempre.

Já fiz algumas vezes, tentando acertar as medidas que não estão anotadas. Fica delicioso, porém nunca igual o de minha avó. Seria querer demais que fosse. Vó é vó e fim de papo.

Um dos ingrediente sempre faltou, porque simplesmente nunca encontrei. Trata-se da Semente de Pichilim. Pesquisando, soube que é a  Semente da Nectandra pichury ou  Licaria puchury-major, uma fava de árvore da família do louro e canela.  Também é conhecida como pixuri, pichurim, puchury e noz-moscada do Pará. Seja como for, o simples fato de chegar bem perto do sabor do Molho Lola já foi muito bom.

O imprescindível nesta receita é que os ingredientes sejam moídos na máquina de moer carne e não processados.

Passo para vocês a receita exatamente como recebi. No mesmo papel, há 16 anos atrás. Isto é a melhor definição de Comida da Boa Lembrança.

 

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 10 comentários

  1. Stella

    Orlando, que coisa linda, como sempre! Fico emocionada, sei exatamente do que se trata essas sagradas reuniões na cozinha e sei o que é comida de vó! Tenho a minha ainda, ativa apesar do joelho e da artrite mas as mãos de fada da minha vozinha permanecem maravilhosas em seus quase 94 anos! Ela é lúcida e nos conta sobre sua infância com detalhes, esses dias estava nos contando sobre o casamento do seu irmão mais velho, eles eram em treze! Minha vó tinha 8 anos e ajudou minha bisa nos preparos das compotas durante semanas…doce de laranja, de figo,de mamão novo recheado com doce de leite que até hoje eu nunca provei,de abóbora…ela se lembra de quantos leitões assaram, galinhas caipiras e macarrão cozinharam. Ela é fantástica e poder ainda estar ao lado dela é uma grande alegria!
    Amei seu texto. Um salve às avós!

  2. Regina Franco

    Olá Orlando,novamente um texto de trazer lágrimas aos meus olhos, mas também uma saudade imensa ao meu coração. Ao ler conseguimos nos transportar para dentro da cozinha de sua avó, e sentir os aromas que deveriam ser maravilhosos. Mas também me trouxe uma saudade imensa da minha avó, que você também conheceu, e sei que vai me entender. Tem coisas na vida da gente que somente avós podem nos dar e ensinar. A mais importante é seu amor incondicional, sem nunca ver nada de errado em seus netos, apenas crianças lindas. E outra é uma receita como essa que você teve a sorte de ganhar. Guarde sempre essa lembrança com você, pois cada vez que olhar para ela verá como valeu a pena ter vivido com ela. Parabéns e obrigado por mais esse momento mágico.

  3. SILVANA VIANA TORRES

    Orlando, minha vó também já está com Deus. Na casa dela tinha duas cozinhas, uma dentro de casa com fogão a gás, só usada à noite para fazer um chá e pra lancharmos antes de dormir. A outra, no quintal, com fogão à lenha, era onde tudo acontecia. Mas vovó não gostava de cozinhar, gostava era de fazer doces de goiaba – no quintal tinha uma goiabeira – de leite, de banana, mamão… e sua especialidade foi embora com ela: Chouriço. Um doce feito com sangue de porco, rapadura, cravo, canela, castanha, amendoim e outras especiarias que não lembro. Ela fazia esse doce uma vez ao ano, num grande tacho de cobre e, como sua avó com o molho de pimenta, mobilizava a cidade (Cabrobó, no vale do Rio S.Francisco). As pessoas deixavam os recipientes e ela devolvia com o doce. Eu era pequena e nunca quis provar… acho que ficava com nojo do sangue de porco, além de ter sido uma criança enjoada pra comer…rárárá… Mas hoje me arrependo. Todas as pessoas falam da maravilha que era o Chouriço de Vovó. Guardo comigo apenas as lembranças do ritual do preparo, que levava vários dias. Ninguém aprendeu a receita. Foi embora com ela. Mãinha sabe fazer vários dos doces que aprendeu com ela, mas o Chouriço…
    Grande abraço, amigo.

  4. Silvana Viana Torres

    Ah! Esqueci de dizer que a letra da sua avó é linda e que adorei a moldura que você fez pra fotografá-la. Um beijo!

  5. Claudia Habas

    Orlando…
    Estou encantada,não só pela receita,mas pelo modo carinhoso de dividir conosco,algo tão especial,tão pessoal.
    Tenho que concordar,comida da casa da vovó é sempre a melhor,ainda mais se tratando das que morram no interior,fogão a lenha,sem pressa…Com muito amor agregado a cada detalhe.Comida simples,porém feita com muito amor,com produtos colhidos na maioria das vezes na hora do preparo…
    Bem,nem é bom pensar em tudo isso,pois as lembranças fluem e com elas vem a saudade…Saudade de um tempo que jamais voltará,minha vozinha nos deixou a 17 anos,mas guardo com carinho na lembrança as comidas que aprendi com ela,o pão de uva que a pouco trouxe para o OBA é receita dela…São lembranças que o tempo não irá apagar de nossos melhores momentos vividos.
    Parabéns Orlando,por mais uma vez nos surpreender com seus posts que são verdadeiras poesias…
    Beijo grande!!!
    Claudia
    *_*

  6. Paulo Orti

    Ola Orlando. Que prazer ler esse texto e ver essa receita no original … muito especial. Mostra o quanto de artístico, carinhoso existen no ato de cozinhar. Vc incoporou isso tão bem. Grande abraço e sempre um prazer ler seus posts.

  7. josue nocentini

    Olá Orlando, tudo bem?

    Ao entrar no site, deparei-me com essa obra prima,receita de sua falecida avo.
    parabéns pela sua sensibilidade, de compartilhar essa obra prima conosco.
    desculpe, mas eu não entendi a escrita:
    2 pacotes de p. inglesa. (o que seria???)
    Se não for pedir muito, gostaria que fizesse a gentileza de me descrever toda a receita.
    você menciona que não encontrou a semente de pichelim? (pichurim)
    Se você quiser, posso lhe enviar as sementes como cortesia por ter postado essa obra prima de sua vó.

    Um grande abraço,

    Josué.

  8. andrea almeida

    Orlando, linda história…estas avós….a minha nos deixou ha 2 anos, aos 100 anos e 7 meses. Era uma fada de olhos muito azuis, sábia como ela só, amante respeitosa da natureza, que mantinha tigelas de barro com água fresca para os pássaros tomarem banho no seu lindo jardim, cozinheira de mão cheia de descendência Austríca, Gertrude Burgel. Os quindins e papos de anjo que ela fazia ficaram famosos em Curitiba Era centenas de encomendas e quando eu ia dormir com ela, tinha papo de anjo no café da manhã!!!!! Adorei esta receita, tenho uma “arvore” de pimenta carregada la em casa e vou testá-la. Só fiquei com uma duvida: vai ao fogo, não é? abraço, parabéns pelo site.

  9. Orlando Baumel

    Olá, Andrea
    Muito obrigado pelas palavras tão gentis.
    Não vai ao fogo. Vai adorar!

  10. Bruno B. Ebermann

    Que lindo! Obrigado por compartilhar.

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