Cantamos uma para a outra enquanto cozinhamos. Vivo com minha mãe há quase dez anos e é isso que fazemos: cantamos uma para a outra. Ela cantarola operetas (e faz isso muito bem), mas eu, na feroz tentativa de manter elevado o nível cultural desse feudo, canto pérolas do cancioneiro popular que dizem coisas como essa ninja guerreira que existe em você há de ser minha herança (por favor, percebam que tento adequar o repertório ao público. Obrigada, de nada).
Quando meu irmão está aqui, ele e eu cantamos, com grande animação e sotaque portenho: todos batendo palmas, isso é tremendo. Nessas ocasiões, mamãe enxuga algumas lágrimas (de orgulho, temos quase certeza).
Se Bernardo, amigo de mamãe, está aqui fazendo pesto, massa de nhoque ou, aleluia, torta de queijo, ele canta perturbadoras cançonetas em italiano sobre a vitória do comunismo e morte à burguesia, mas não vou julgar ninguém.
Tive um amigo, certa vez, que esperava o molho de tomate apurar cantando algo sobre Copacabana ser a princesinha do mar. Mas isso faz muito, muito tempo.
E porque, para mim e boa parte dos meus, música e movimento são a mesma coisa, dançamos também.
Por isso, enquanto espera o leite ferver e derramar sobre o fogão, minha mãe canta a música tema do Havaí 5.0 e dança twist com nosso cãozinho, Baco, sobre uma prancha de surf imaginária – nem tudo na vida é A viúva alegre, queridos. E, pensando bem, mamãe também trata de adequar o repertório ao público. Por isso, nos idos dos anos 1990, quando eu chegava do trabalho às três da manhã, meu pai abandonava a escrivaninha e esperávamos a água do café ferver (ah, a exótica rotina alimentar dos Vitiello) enquanto ele cantarolava e dançávamos e ríamos, concordando que realmente não nos cabia direitos exclusivos sobre ela. Por isso, esperando o queijo derreter, Pedrão e eu cantamos e fazemos a coreografia dos Três Porquinhos (finja que você não leu isso).
Cantamos, dançamos e cozinhamos, não por acreditarmos que a vida é boa ou, que Deus nos ajude, amena. Cantamos e dançamos e cozinhamos e apuramos o molho e descascamos as mandioquinhas e fervemos lagostas e batemos ovos com creme azedo e manteiga e usamos os temperos da Ginger e queimamos a torrada, porque a existência se trata disso: uma sucessão de frituras, escaldares, boleros, minuetos e aquele pão velho delicinha no fundo do prato de sopa de cebola.
A vida não nos espera, não nos compreende, não nos dá tempo para entender coisa alguma – desconfio nem goste muito de nós. Mas ela abre espaço para macarrão al dente, salsinha picada, Ângela Maria e, que diabos, o rebolado dos Três Porquinhos.
Volto ao OBA!, de onde nunca saí, para falar com vocês sobre o pano de prato que desapareceu, o disco novo do velho jazzeiro, a maravilhosa receita do chef Baumel, os camarões da Camila, o risoto do meu amigo Paulo (que na verdade é o risoto da minha amiga Ana), uma gentil caneca de café com creme e canela com o Mauro, a pasta americana da Telinha e a maquininha de café do Pedrão e a Patrícia.
Volto ao OBA!, de onde realmente nunca saí, para falar sobre a nossa dança, a nossa cozinha, as nossas certezas, as nossas canções.
Que alegria estar aqui.
Obrigada por me receberem.
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Em tempo: o site se chama Oba Gastronomia, e esse Oba vem do nome do nosso fundador e salvador, Orlando Baumel. Chamo o site de OBA! desde sempre, primeiro porque é irresistível, depois porque isso faz o chef rir.
E nosso jantar-dançante, depois de muita discussão, é com hífen. Chegamos à conclusão de que o “jantar” e o “dançante” estão de mãos dadas.
Acreditamos muitíssimo em mãos dadas aqui no OBA!.
Delícia de texto que cabe diretinho no site deste amigo tão querido e competente!!! Impossível resistir a este convite.
que delicia!!
aqui também tem musica o dia inteiro e a gente canta e as vezes até dança.
as comidas é que não estão sendo mais lá essas coisas, mas a gente come assim mesmo.
e viva a vida, apesar de tudo…
beijo enorme querida, bom (re)ver você aqui, na casa do nosso chef preferido.
Ah, Fal, Fal… você é mesmo de verdade né?
Gostoso… aqui se come tranqueira e coisa boa, depende menos da música do que da vontade louca de comer coisas diferentes ou corriqueiras! Vamos do mambo ao jazz e da canja às ilhas flutuantes!
que alegria, que alegria, que alegria! 🙂
Viva!
Beijos!
Fal, neste delicioso texto (acho que eu já disse umas 1.751,4 vezes que seus textos são deliciosos, não disse?), você apresenta ao leitor situações extremamente singelas, envolvendo comidas e pessoas. Todavia, faz com ambas um verdadeiro banquete: um banquete. de palavras,. Um Banquete Literário!