Um X-Tudo emocionante.

A Fal continua emocionando. Mais uma crônica linda.

X-tudo

Nosso velho e saudoso pai era um sujeito macho. Que criou o filho e a filha para serem machos.

De modo que fomos criados bem acima da fronteira onde o topete encontra a temeridade, onde ovos cor de abóbora e sonhos suspeitos comungam em vitrinas embaçadas, ao lado de coxinhas encharcadas e empadinhas debutantes. Lá, lá mesmo, onde mistos quentes são feitos em chapas que nada mais são do que placas de petri com aquecimento central.

No tempo em que não existia gordura trans, a vida era dura mas emocionante para as crianças Vitiello, sempre em busca do desconhecido.

Era nos finais de semana que o reinado de terror do pai se instalava – porque justiça seja feita à minha mãe, a velha nos criou com suflês de vegetais, suco sem açúcar, leite B e saladas e nunca esteve envolvida nesse lado trash de nossa existência.

O alvo preferencial de papai eram os botecos.

Comida de boteco.

E tome batatinhas em conserva, pastéis, garapa geladinha, hamburger à milanesa, ovos recheados, salgadinhos vários, sandubas diversos.

Pra beber, às vezes suco de laranja, Às vezes iogurte batido com leite, inclusive pro pai, que não bebia álcool nessas excursões. E, quase sempre, guaraná.

Nós comíamos e olhávamos o mundo. O pai nos fazia prestar atenção à nossa volta e nos estimulava a falar com quem quer que fosse. Víamos aqueles senhorzinhos que, às seis e meia da manhã, já atacavam uma cerveja gelada. Tinha também a turma do Caracu com ovo. Para nosso espanto, descobrimos que se comia ovo cru. Quando Rocky Balboa apareceu, fomos as únicas crianças que não gritaram de nojo no cinema.

Descobríamos que algumas pessoas tinham que contar os trocados para inteirar um sanduíche. Nós, os meninos de classe média, cuidados e preservados durante a semana, protegidos do mundo real, correndo da escola metida a besta pras aulas de equitação, aos sábados e domingos batíamos papo com os caras que lavavam carros no posto ao lado da padaria, com as senhoras que falavam sozinhas enquanto tomavam uma pinguinha (ou duas, ou três), ouvíamos as histórias dos balconistas, quase todos nordestinos, quase todos muito sós, espantados com a cidade, com a vida.

Sentados em tamboretes de botecos, meu irmãozinho e eu tivemos contato e conversamos e respondemos perguntas e rimos das piadas e brincamos com os filhos de pessoas as quais, doutra forma, nós nem saberíamos que existiam. Não sei muito bem se o pai fez isso de propósito ou não. Acho que não. Consciência social não era exatamente o forte dele, e, além disso, ele realmente adorava um boteco.

A comida nos unia. E todos juntos enfrentávamos as sardinhas em conserva, salsichões temperados, pastéis de vento, churrasquinhos de gato, algodões-doces, pratos comercias (“Com ou sem couve, doutor?” “Com, soca couve nessas crianças.”), quebra-queixos divinais, tortas doces e salgadas insuspeitamente boas, risoles suspeitos, sanduíches de mortadela – clássicos ou nem tanto-, lingüiças suculentas, torresmos gigantes.

Não, a comida que você faz em casa não chega nem aos pés da comida de boteco, desista. É outro clima, outro tempero, outro ambiente. A verdadeira empadinha tem outro sabor quando é comida ao lado de um carroceiro que lhe conta sobre sua infância no Jabaquara, quando o bairro era mato e pântanos.

É outra a batatinha frita, quando é comida no colo do seu vô, o Velho Affonso, num boteco da Heitor Penteado, enquanto o velho bate papo com amigos que, como ele, são chegados numa birita e em apostar um dinheirinho nas patas dos cavalos. Você come as batatinhas, as pernas magras do velho lhe servem de ninho, todos os senhorzinhos do boteco dizem que você é fofo, todos eles pagam picolés Chicabom para você, o Velho Affonso batiza sua soda com o Campari dele (que nossa mãe não nos ouça) e a vida é muito boa. Tudo está bem.

Mas, enfim, nossos dois velhos botequeiros já se foram há tanto tempo, e nada, nem a coxinha-creme da padoca aqui de perto, nem o Campari do qual nos servimos em meus belos copos de cristal, até na frente da nossa mãe, têm o mesmo sabor.

Nem a vida, caras. Sabemos disso.

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 10 comentários

  1. Adrina

    O velho Zequinha, de quem tive a honra de ser neta, passou os últimos 10 anos da vida comendo religiosamente todos os dias uma coxinha massuda com uma coca de garrafinha, no mesmo bar, o da esquina da praça. Chegava em casa empanturrado e dizia que estava sem fome, e a velha dizia “seu avô deve estar doente, já não come mais”.
    O velho se foi há alguns anos, a velha está apenas parcialmente viva pois perdeu a memória, mas, olha, não posso deixar de confessar que sinto um nó na garganta quando lembro disso tudo.

  2. Milton T.

    Nossa Fal, que texto bacana. Continuo adorando comida de boteco, Pirajá, Elídio, Léo, mas quando estudava no Bandeirantes, comia sanduíches de carne assada nos botecos do Paraíso. Na Catedral, inventei o sanduba de esfihas, pedia um pão sírio e botava uma esfiha dentro, pra dar mais sustança e sobrar dinheiro pro hot dog do Baiano na saída heheh. No meu 1o emprego, numa grande fábrica, comia cachorro quente com molho de tomates, de café da manhã, no boteco do Seu Joaquim. Torresmo e bolinho de ovo, antes do almoço e uma cervejinha para abrir o apetite no bandejão….hehehe

  3. Lu

    Adorei. A vida antigamente, parecia ter outro ritmo, outros sabores mesmo. Mas nem sei se tinha…

  4. Isa

    Adoro quando contas histórias assim, tou te a ver no colo do teu avô, ainda que n o tivesse conhecido. Adorei o texto, o paralelismo da infância com a comida, o facto de não ter o mesmo sabor hoje, ainda que, acreditom feita com os mesmos ingredientes. Mais limpinho, menos saboroso. Tu sabes contar histórias e estas sagas da comida estão cada dia melhores. bjo

  5. Max

    minha família tinha um mercadinho, daqueles com caixas cheias de fubá e feijão, sacos de arroz abertos onde vc mergulhava uma concha metálica para tirar a quantidade que o freguês queria, linguiças dependuradas em varas pelo teto, queijos, goiabadas…
    E tivemos uma adição de alta tecnologia: uma máquina de assar frangos, a famosa “televisão de cachorro”. Quem preparava os frangos para ir para a máquina era o Jair, um funcionário faz tudo que tínhamos lá, e eles as vezes fazia isso sem nem lavar as mãos que haviam acabado de descarregar um caminhão de batatas e cebolas. E minha mãe ficava emputecida de ver que as pessoas achavam aquele frango ali, principalmente os que eram abertos sobre o balcão para acompanhar uma cervejinha de final de tarde, melhor que o dela, feito em casa, com todo o carinho e asseio…

  6. weno

    Fal, sei bem do que você fala. Meu avô manteve um boteco a vida inteira, no Tucuruvi e na Vl.Maria. Minha diversão era trabalhar com ele, acordando de madrugada e vendo a vida passar sobre os bancos-tamboretes (que adorava rodar sentado em cima).

    Beijo!

  7. Stella

    Dá-lhe lembranças de infância….Eu também fui agraciada com essas excursões aos botecos das imediações onde morava. Cresci na Alagôas, pertinho da Angélica e minha mãe adorava os botequinhos da Consolação.Boêmia que era, levava a gordinha pra comer coxinha e “tomar um guaraná” aqueles com rótulo de papel e garrafa marrom, coca não porque coca vicia e um homem caiu dentro do tonel onde se prepara o refrigerante! Quer tomar coca com pedaço de gente?E daí ela mandava várias “meias cervejinhas” pro peito (eram garrafas menores,gorduchinhas não me lembro de quantos ml) e quando começava a chegar a rapaziada do violão a cerveja crescia e eu ganhava pastel,misto quente,diamante negro (não estou louca nos anos 70/80 essas barras de chocolate eram mais encorpadas) e o que mais eu quisesse pra que ela pudesse cantar sossegada, a rapaziada do violão também caprichava e me dava bala de leite kids….resultado: me tornei figurinha conhecida ( e gorducha)nos botecos da redondeza e fatalmente apreciadora dos quitutes e da MPB cantada pela minha mãe com os braços abertos transbordando emoção com seus companheiros de boemia noite afora.

  8. Orlando Baumel

    Que coisa linda, Stella…
    Eu, que sou músico também, me emocionei..
    A Falzinha é demais..meu orgulho no OBA!!
    Muito obrigado!!!

  9. Tati

    MInha gente, eu ja estava apaixonada na parte culinaria do blog, masss, essasss cronicas que issoooo??? Amor total e absoluto, obrigadaaaaaaaa mesmoooooo, vcs fazem, fizeram e certemente farão meus dias mais deliciosos, bjks Tati

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