No frigir dos ovos.
Mais uma linda crônica da Fal Azevedo.
No Frigir
O ovo. Esse desconhecido. Rá, mentira minha, o ovo é nosso conhecidíssimo, amadíssimo, odiadíssimo, tem colesterol, não tem colesterol, come um por semana, come dois por semana, libera, a vida é curta, não, proíbe de novo, isso mata. Ovo, símbolo da vida, todo mundo já foi ovo, o dinossauro, a lontra, o salmão, o Doutor Zahi Hawass também já foi, foram ovos o seu gato, você, seu gerente de banco, até sua omelete já foi ovo. E a galinha, claro, já foi ovo, mas nasceu primeiro. Ovo, ovo, ovo, ovos quentes, a mãe, seus aristocráticos ‘ovos de dois minutos’ e minha infância – que parece não ter durado mais de dois minutos, mas que enquanto durou, foi recheada dos mais deliciosos zabaiones que essa mesma mãe dos ovos quentes fazia com os minúsculos ovos beges de nossas galinhazinhas, gemas, vinho do porto, açúcar e braço, a velha não fazia na batedeira não, era no muque, aquele creminho mole sendo batido, batido, batido, o banho maria, a cozinha pequena, ela tinha preparo, para ser mãe há que se ter preparo emocional, mental e também físico, meus senhores. Ovos recheados, delícia portuguesa, na Alfama, recheados de gema, sardinha, salsa, tomates, temperos mis, tudo bem misturadinho, depois de subir e descer ladeira, depois de aprender que aqueles castelos gigantes, com veludos e brocados e pentedeiras com espelho bisotê e torres para prender princesinhas vieram depois, que antes um castelo era uma fortificação, tão lá os muros, as escadas, os velhos canhões, as armas e os barões assinalados, as passagens secretas e a vista, ah, a vista, depois de tirar rolos e rolos de filme, o tempo em que os filmes vinham em rolos, fotos lindas, depois de aprender nome e datas e batalhas, depois de temer os mouros, depois de falar com motoristas de táxi engraçadíssimos, depois de pedir explicações para senhorinhas prolixas, depois de ouvir o garção cantar, comi meus ovos recheados com as mãos, numa mesinha precariamente instalada na calçada, os pés fora dos sapatos, o rosto vermelho, a cabeça apoiada no ombro do pai que declamava Camões com um sotaque inacreditavelmente autêntico e beijava meus cabelos, e também as memórias gloriosas daqueles reis que foram dilatando a Fé, o Império, e as terras viciosas. Ovos nos botequins que pai e avô nos levavam na infância, cascas cor-de-rosa, azuis e cor-de-abóbora, pedia-se um tremendo de emoção, o azul, não!, péra aê, o rosa, não, péra, deixa eu pensar, só pro pai descascar e, ah, por dentro era só um ovo cozido, igual ao de casa, não tem nada de emocionante, só ovo só, você não lembra, semana passada foi a mesma coisa. Ovos enormes e azuis que uma senhora bigoduda vinha vender num cesto quando morávamos na chácara, os patos também botam ovos sim, como as galinhas, bico de pato, bico de galinha e no que mais são diferentes, muito bem, os pés, os patos são diferentes por que, porque os patos nadam, quá-quá-quá, có-có-có. E a bisavó, sem dinheiro para comprar ovos de Páscoa, fazia os bolinhos doces de sempre, os ciciriciara, ovo, farinha, açúcar e fermento, moldados em formato de ovo, fritava no óleo e passava um por um na calda de açúcar queimado, era a Páscoa, era o símbolo, ali, grudento e delicioso, a menina que foi mãe e antes dela, a menina que foi mãe da mãe, quebravam a casquinha de açúcar no dente e achavam aquilo o céu e sabiam que não havia vida melhor. Ovos com duas gemas, mas como pode, são de pintinhos gêmeos, mamãe? E a constatação assombrada de que todo ovo que comíamos deixava de ser um pintinho, aquela coisa fofa e amarelinha, coberta de pelinho fino, como o cabelo da mãe, como o cabelo do vô, e a conclusão do irmão, que sempre teve pendores científicos, que a gema é que vira pintinho, explicando para sempre o amarelo e as suas conseqüências. Ovos quebrados um a um, com cuidado no potinho verde, ovos que vinham do galinheiro do vô José Menino e que se não virassem bolo, virariam galo de briga, a gema aqui, a clara ali, cada ovo separado e setorizado, usos e aplicações, a massa, o recheio, a cobertura, a vó fazia bolo para fora, tudo feito com muita economia, com muito zelo, a vó ainda fazia ovos de Páscoa para vender e para dar para os netos, lindos ovos de chocolate branco, recheados de bombons crocantes, embalados em tule azul para o menino, lindos ovos de chocolate preto para a menina, o rosa do tule, o verde dos bombons de menta, a cara branca da vó que ficava tão vermelha quando elogiada. O irmão, seu aniversário no começo de abril, sua festa tem bolo de coelho e caçada aos ovinhos, esse irmão, a vida toda a sensação que ele era quem trazia a Páscoa, os coelhinhos botadores, o papel colorido, os bombons. A vó que foi falar sobre os ovos da largatixa e a menina quase morreu, como assim, lagartixa bota ovo, bota, largatixa, jacaré, tartaruga, cobra, dinossauro, a menina suando de nervoso e a mãe, para arrematar, lança a bomba de que todo mundo um dia foi ovo, ora, como eu expliquei lá no começo, a mãe diz pra menina que ela já foi um ovinho dentro da barriga da mãe, e que as filhas dela já estão lá, ovos dentro da sua própria barriga, a gente nunca se recupera de certos sustos, eu fui ovo, eu fui ovo e tenho ovo, eu fui ovo. E depois da realidade encarada e aceita, já que até peixe bota ovo, tudo bem se o Velho Affonso comer os ovinhos de peixe, pretos, vermelhos, despretensiosamente, de pé na cozinha tão simples, às colheradas, suas mãos grossas de pedreiro escondiam as latinhas mínimas, ovos em lata, veja você, o mundo nunca parava de espantar a menina que achava os tais ovos de peixe horríveis, mas que adorava o vô, sua calças marrons, adorava quando ele botava um cadinho dos ovinhos na torrada, come belinha, esses aqui não têm gema, mas são ovinhos, come, não vô, mas aqueles outros ovinhos, ovo de codorna, isso, ovo de codorna, aquilo sim, aquele você faz vô que eu como, faço belinha, ovinho de codorna, com azeite e orégano e garfinho de dois dentes, bom?, bom. O Velho também fazia os ovos turcos, receita repetida ou inventada, a menina nunca soube, azeite e os tomates e a cebola, muita cebola, a frigideira da casa do Velho era toda preta e quando tudo estava molengo e cheiroso iam os ovos, um, dois, três e era tudo mexido, e o velho empurrava aquilo tudo para o garfo com o pão, era bom comer no colo dele, pão numa mão, garfo na outra, pão esfregado no prato vazio, bom?, bom. Ovo frito na manteiga, domingo de manhã e ela com o marido, lendo a revista só para ter do que falar mal, de mudinha e meias, com o cabelo despenteado, vamos ver um filme, nãããão, vamos só ficar mudando de canal. Ovos quebrados em cima do molho de tomate, dentro do refratário que ia para o forno, os ovos saiam do forno perfeitinhos, como os de frigideira, papai como chama isso?, Bibi isso chama ‘ovos no inferno’. E a história de que as freiras em Portugal engomavam os hábitos com as claras e usavam as gemas para fazer doces, caixinhas de ovos, caladinhos, medronhos, cagotes, doces de ovos do convento da Ribeira, vencedores, esquecidos cobertos, lionesas, brisas do Lis, toicinhos do céu, amores de azeitão, ovos moles, jesuítas, escarumbas, celestes de Santa Clara, bispos, cavacas das caldas da rainha, pudins de São Martinho, charcadas à alentejana, trouxas das caldas, arrufadas de Coimbra, delícias à moda de Teresa Pité, fios de ovos, pastéis de nata, alsacianos, doces de Badajoz, jarócas, pudins de ovos dos frades do convento de Alcobaça, amores da curia, torrões de gemas, paraísos, barrigas de freira, natas do céu, sericás, açordas reais, velhoses à antiga portuguesa, africanos, joanas, estrelas de Portugal, pastéis de Santa Clara, arrepiados, rebuçados, sardinhas doces de Nazaré, fidalguinhos de Braga, meias-luas, melindres, carriços, empenadilhas da Páscoa, caprichos de Setúbal, travesseiros de Sintra, esquecidos da vida, mimosos, raivas do convento da Castanheira, azevias. História tão linda. Mas uma tarde, três horas de andanças no Mosteiro dos Jerónimos, subidas e descidas na Torre de Belém, batatas da perna clinicamente mortas, e sentam-se o pai, a Inesita, a moça, a comer os pastéis de Belém, os legítimos, os de verdade, e o português da mesa ao lado, falante e tranqüilo, pôe-se a exlicar que não, o hábito das freiras é lindo mas a verdade é que Portugal tinha mais ovos que qualquer outro lugar do mundo e usava de seus ovos só a clara, dentro do país ou exportando proutros cantos, para ajudar na puficação do vinho branco e para engomar os ternos de gente rica. E com toda essa demanda de claras, sobravam as gemas, coitadinhas, esquecidas, usadas para alimentar os porcos, os pobres e, por que não, as irmãzinhas de caridade, que faziam milagres açucarados. Mas a moça gosta mais das feiras e de seus hábitos imaculados e, como sempre, escolhe sua verdade e acredita no que quer. E houve ainda o pai da Naty, um guarda-chuva velho e uma dúzia de ovos de galinha, ele vindo do supermercado, o botão vermelho do guarda-chuva dispara sozinho, e lá foi a caixa de ovos pro meio da rua, lançada longe por um guarda-chuvas maluco, que virou quebra-ovos para sempre. A primeira omelete alta e fofa da moça, a primeira que não grudou na frigideira, a primeira que não solou, a primeira boa de mostrar para os outros, o primeiro bolo, a primeira clara em neve, dava para virar a tigela de cabeça para baixo que não caía nada, o primeiro bife à milanesa, ovo, farinha, ovo, farinha e ela lembra dos meninos do colégio, a mania besta de jogar ovo na cabeça do aniversariante e a Laura, dona do colégio despencava doida da vida no pátio, meninos, não joguem ovos fora, me dêem que eu faço custódio pra vocês, a receita perdida, uma espécie de pudim com calda e também ovinho frito no azeite, as bordas tostadas, a cozinha da Laura, suas panelas de cobre. E já que lagarto e ganso e pato e dinossauro e águia e dragão de komodo e mosquito e papagaio e corvo e perdiz e codorna e marreco e iguana e cobra e borboleta e peixe e aranha e sapo botam ovo, já que um dia a própria menina botará seus ovinhos, já que as tartaruguinhas correm pela areia recém-nascidas, isso quando não são engolidas enquanto ainda são ovos por garças de olhos redondos, tudo bem se o coelhinho também botar ovos, e fizer seu ninho escondido, as pegadas de coelho feitas de maisena no chão da cozinha, e ovos-pistas espalhados pela casa, nas gavetas de talheres, dentro das meias, no teclado do piano, atrás dos livros na estante, e no jardim, nas moitas, nas flores, no banco da bicicleta, eita coelho danado, um ninho enorme, os papéis coloridos, o coelho bota o ovo e depois traz, a galinha bota e o coelho só entrega, mistérios, cada ano uma explicação diferente, mas ninguém ligava, porque o futuro estava tão longe e o amanhã ainda não era O Amanhã, e com os braços cheios de coisas deliciosas, ninguém mesmo ia ter força de caráter para investigar o que quer que fosse. Ovo, ovo, ovo, a vida e a ressureição, a esperança, o que se renova, o que se explica e se justifica, o que sempre volta, o que nunca foi, o que é imutável e ainda assim, não permanece, o que se recria, os cabelos escuros do irmão, os cabelos escuros do sobrinho, o que se refaz, o que guarda em si mesmo sua próxima vida, o que nasce primeiro, o que restaura, o que protege, o que nutre, o que ampara, o que procura no jardim, o que se ganha em papel colorido, recheado de bombons, de certeza, de doçura, de amor, de promessas e o futuro que está longe e o amanhã que ainda não é.
Sim, não há doces e bolos melhores do que os feitos à base de ovo 🙂
Bjos da Portuga
Fal, seu texto me aguçou a memória gustativa. minha vó fazia um ovo mole, salgado no ponto, quentinho, uma delícia. E nos dava às colheradinhas na boca. É tudo um borrão na minha mente, mas o sabor… Não esqueci!
Obrigada, amor, por mais esse texto!