Poemas de Trimalquio.

Fal  Azevedo, com mais uma linda crônica.

Poemas de Trimalquio

Os banquetes de antigamente começavam com virgens etíopes fazendo danças tremilicantes, eunucos eruditos declamando versos épicos, escravos tirando as sandálias dos convivas e untando seus pés com óleos aromáticos, menestréis entoando cantigas de amor, cães e cavalos fazendo malabarismos, ablução das mãos (muitas vezes com vinho, quéridos), vinho quente temperado com mel servido em taças de ouro maciço mesmo antes do visitante sentar, sacerdotisas vestais nuas tocando flauta, garotos impúberes entoando poemas de Trimalquio (personagem de Petrônio em Satiricon), ânforas transbordando vieiras (te mete), fontes de prata em formato de cabeça de javali jorrando vinho resinado, bandejas de prata e ouro cheias de tâmaras egípcias, pés de camelo, línguas assadas de rouxinóis e garças, miolos de flamingos, vesículas de lampréia, carpaccio de foca, camarões glaçados, esquilos caramelados, javalis assados que quando tinham seus ventres trinchados liberavam revoadas de tordos e sabe Deus o que mais.

Terrine de carne de apatossauro creio eu.

Essa foi a coisa mais importante que eu aprendi lendo o livro “O Banquete” de Roy Strong: a gente é pobre e vive mal.

A segunda coisa mais importante que eu aprendi no livro foi que tempo houve, meus filhos, em essa frescura de “entrada” já foi muito mais animada que a nossa saladinha e o pão com berinjela. Mas sempre existiram, claro, as refeições onde todas as travessas são postas sobre a mesa.

“Como na minha casa!”

Claro. Na maioria das casas, hoje e sempre, as travessas são todas postas em cima da mesa (nenhuma com língua de papagaio assada, espero) e fim de papo. E notem que eu fui simpática e disse “na maioria”, porque se vocês querem saber a verdade, na minha casa, marido se servia mesmo era no fogão. Quando tinha janta, rá.

Mas hoje eu não quero falar do “todo dia”. Quero falar da exceção, do jantar especial que você vai fazer, não importa para quem.

Bão, esse jantar especial cheio de frescuras e delícias tem que começar pela entrada. Tem? Tem, caramba. É lindo, vá? Faça um esforço de reportagem e capriche. Só dessa vez (rarará, vocês estão deixando que uma mulher que obrigava o pobre do marido a fazer o prato no fogão lhes dê conselhos sobre como montar uma refeição? Vocês são doidos.)

Esse negócio de entrada foi inventado e reinventado, em diferentes momentos da história. Essa idéia de começar a refeição com um prato leve e gostoso que nos prepare para o resto da refeição, teretetê reaparece e é saudada como uma grande “novidade”.

A reinvenção mais recente da entrada vem da primeira metade do século XIX – também me ensinou o professor Roy Strong.

Ah, o século XIX, meus filhos. Aquilo é que foi século da pessoa viver. A escravidão já havia sido (ou estava para ser) abolida de vários países, mulheres sabidas e muito, muito mais cultas que suas bisavós começam, pé ante pé, a inventar o mundo das sufragistas que vinham aí, as relações de trabalho começavam (beeeeeeeem devagarim) a mudar; mas ao mesmo tempo usávamos espartilhos, os homens tinham barba e bigode e usavam paletós, viajávamos de trem, usávamos gorrinhos para dormir e Melville, Sir Doyle e o genial Eça estavam mandando a maior brasa. Um grande século, eu digo. O maior de todos.

A burguesia européia, seguindo a tradição da classe operária – de onde, aliás, havia saído – levava à mesa todos os pratos da refeição, para que cada um começasse por onde quisesse: salgados ou doces, sólidos ou líquidos. Mas conforme essa burguesia ascende, tem contato com a nobreza, ainda que a pequena nobreza, e passa a oferecer e a freqüentar jantares festivos com maior freqüência, ela também passa a montar cardápios que incluam a entrada.

Enfim, ainda que este não seja um hábito possível para todos os dias, ainda que você não vá promover sacrifícios rituais antes do jantar (pelamordedeus, se você for matar um bode antes do jantar, não me chame) e nem vá ter arautos euripidianos anunciando que os defianos podem entrar.

Pense em começar algumas refeições, com ou sem visitas, com uma entrada gostosa, colorida. Só pela frescura da coisa.

Gaspazzo da Dona Antonieta: Para cada oito tomates, dois pepinos, um pimentão vermelho e um pimentão amarelo (lá na casa do Velho Affonso, meu avô paterno, era tudo com pele e com sementes, em cubos maisômenos, nada de muita gracinha, que lá só tinha draga), o Velho juntava um cálice (daqueles titicos, de licor)  cheio de vinagre. Da cor que você quiser, não interrompa o velho com futilidades. Depois, mais ou menos a mão cheia de nozes picadinhas (caras, a mão do meu avô era e-n-o-r-m-e), uma colher (grandona) de alho picado e uma cebola (ou duas, lémcasa todo mundo amava cebola, té as crianças). Ah, esqueci, pressa medida de tudo, uma fatia de pão italiano despedaçadinho. E água gelada. Liquidificador com tudo. Vai pondo a aguinha pra maçaroca bater, mas não pra liquefazer, prestenção. Formô. Sal, pimenta do reino, geladeira. É ridículo de tão fácil. É uma vergonha dar essa receita aqui pruns leitores tão sabidos que me mandam receita de nhoque de abóbora (Claudia Lyra, a fofa da Ivete nos salvou, é nóis, agora só temos que convencer a Zel a nos alimentar). Mas era meu avô que fazia e a gente comia rezando. Ou seja lá o que uma família de ateus faz quando consternada e posta frente a frente com o Divino.

Quando tinha, o véio botava uns dois ou três ovinhos de codorna no fundo de cada prato. Mas nem sempre tinha. Ah. sim, e azeite. O Velho fazia um circulo de azeite depois de encher o prato com esse creme gelado. É minha entrada preferida <em>ever.</em>

(Por que é que o Gaspazzo chama Dona Antonieta? Porque o Velho Affonso era casado com ela, oras. Ela, aliás, não entrava nunca na cozinha, não, nem pra lavar a louça.)

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 4 comentários

  1. Que felicidade tinha essa Dona Antonieta! E eu que na falta de assunto faço reflexões enquanto lavo minhas panelas…
    Fall você sempre ótima.
    Beijinhos daqui!

  2. Fal, que delicia de texto, de receita e de avós! Atualmente, tenho sido uma Antonieta, marido que faz tudo o di comer por aqui e está me maravilhando todos os dias!
    Vou já passar essa receita pra ele e depois é só amar muito! bjs

  3. Isa

    Ai Fal, olha, eu sei que sou uma chata e pouco original, mas caramba, que crónica maravilhosa! Adoro estas histórias, como misturas História com história e estória. AMO.
    Bjo

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