Pausa para um Café.

Minha querida fal Azevedo passeando pela história do café.

Era uma vez um pastor etíope chamado Kaldi, que em meados do século VI ou IX (depende da versão) notou que suas cabras ficavam agitadas e maluquinhas ao comer os frutos vermelhos dos arbustos selvagens. Kaldi provou dos tais frutos. Notou que o efeito não era nada mau. A novidade se espalhou. Até que chegou num monge árabe, doido pra passar a noite acordado rezando, que viu naquelas frutinhas potencial para mantê-lo alerta. Vai daí que o tal monge inventou uma infusão com as frutinhas do cafeeiro. Essa infusão potencializava as propriedades das frutinhas.

E detrás da minha caneca térmica chiquérrima, onde cabem 500 ml abençoados de café fumegante, não estou nem aí para saber quanto dessa lenda é verdade. Eu adoro esta história.

A lenda do pastor Kaldi é de aproximadamente 575 d.C. Até o ano 1000, o café foi muito consumido como alimento cru e plantado em grande quantidade no Yêmen (da Etiópia ele chega à Arábia, através dos mercadores). Uma das formas de consumi-lo cru, uhu, é macerá-lo e misturá-lo à banha e era isso mesmo que a turma fazia, amado leitor, pode acreditar. Mas faltava, faltava.. faltava um ‘tchans’, entende? Então, lá pelo ano 1000, uma alma elevada inventa de mergulhar as tais frutinhas em água fervendo e isto nos deixa mais apaixonados ainda por café.

Sabe por que foi muito bacana essa invenção de casar água quente com café? Hum, primeiro deixe-nos contar para você que amamos café porque ele tem cafeína. A cafeína nada mais é que um composto orgânico pertencente ao grupo dos alcalóides e é ela que dá o sabor amargo do café.  A cafeína, amiguinho, mexe numa porção de baratos muito loucos da pesada em seu cérebro (do qual eu pouparei vocês porque faltei a todas as aulas de biologia) o que faz com que a adrenalina seja liberada em seu corpo estimulando seu sistema nervoso e sua circulação, fazendo você ficar mais alerta, mais espertinho e mais corajoso para enfrentar o trabalho, a discussão, a leitura do relatório, o filme que só passa às altas da madrugada e o estudo de última hora para a prova fatal.

Bão, cafeína é extremamente solúvel em água quente – e é por isso devemos tanto ao monge árabe, ou seja, lá quem inventou de botar as frutinhas dentro d’água fervendo. Ah, sim, verdade, tem cafeína no chocolate, no chá, nos refrigerantes, sim. Mas no café – dãããããã – tem mais.

Nossos irmãos muçulmanos adoravam café. Devotos de uma religião que não permite o álcool, os muçulmanos abraçaram o café com entusiasmo – ah, os encantos de um estimulante não alcoólico.

Desde o século X, eles vêm tomando café – o que os redime, em parte (pelo menos aos meus olhos), do desenvolvimento da matemática e da, urgh, geometria.

Os árabes, sendo os caras voltados para a ciência e para o estudo que eram, danaram a estudar o tal de café. Os escritos mais antigos sobre o café datam de 575 d.C., e vem do Yêmen. Nestes escritos, soube-se que o café, planta selvagem da Etiópia e consumido in natura, passa a ser cultivado.

Em 900 a.C., um médico árabe chamado Rhazes escreve um trabalho científico sobre o café e o chama de buchum ou buca.

Em 1470, quando o café chega a Meca e Medina, ele ainda é feito com grãos torrados com casca, depois esmagado até virar pó e depois misturado a água fervente para ser consumido sem coar.

Em 1505, o café chega ao Ceilão e ao Cairo. Mas o mundo islâmico quase perde essa boquinha: no começo do século XVI, em 1511, Kair Bey, que era governador de Meca, proíbe o café citando o Alcorão. O sultão não apenas foi lá e revogou essa lei idiota, como conferiu ao café status de sagrado e mandou matar Bey. Eu achei que foi bem feito.

Em 1526, o café já estava liberado de novo. O plantio de café seguia firme na Península Arábica e depois começou na Turquia. O primeiro coffe shop do mundo é foi aberto, em 1475, em Constantinopla. Chamava-se Kiva Han. E a Turquia tinha leis que rezavam que, se o marido não pudesse prover sua casa com certa cota anual de café, a esposa poderia pedir divórcio.  Tem como não adorar estes caras?

Bão, em 1592, um alemão chamado Leonard Ranwolf viajou para o Oriente e voltou seus olhos arregalados para o café. Depois dele, um botânico italiano chamado Próspero Alpini também foi para o Oriente. Alpini era completamente apaixonado por botânica. No final do século XVI, ele foi ao Egito, como médico pessoal do cônsul veneziano no Cairo, George Emo.  No Egito, além de cuidar de Signore Emo, ele estudou plantas que na Europa eram raras ou desconhecidas. Bão, Alpini voltou para casa extasiado com suas descobertas pessoais sobre o café. E ativo. Muito ativo. De volta à Europa, ele publicou trabalhos sobre as plantas que estudou no Oriente. Num deles, De Medicina Egyptiorum, publicado em Veneza, em 1591, ele fala da tamareira, da bananeira e do baobá, além de fazer a primeira descrição do cafeeiro que a Europa conhece. A Europa, aos poucos, ia tomando “pé na maré deste verão”. Rá. Eu sou muito anos 80.

(Pausa só preu dizer: Em 1600, o café passa a ser plantado no sul da Índia e em 1610, Sir G. Sandy, um poeta inglês em viagem ao Oriente, anota que, naquela região, bebia-se algo chamado coffa, que era servido quente, quase fervendo).

Na Europa, o café chega, em 1615, a Veneza (onde também surgirá o primeiro estabelecimento voltado para o consumo de café, em 1645), em 1616 à Holanda, em 1637 à Inglaterra (graças a Nathaniel Conopius, um estudante de Creta que ia estudar em Oxford, e a Inglaterra abriria sua primeira cafeteria, em 1650, em Oxford), em 1650 o café chega a Viena, em 1668 chega aos USA, em 1670 chega à Alemanha e em 1685, o cafe au lait é recomendado como remédio em Grennoble, França.

Ah, olha que coisa bacana: Em 1687, o exército otomano cerca Viena. Os turcos, vencidos, fogem, deixando para trás as sacas de café que deveriam abastecer o exército otomano. Os vienenses ficam com o café, abrem sua primeira cafeteria e lá, o café começa a ser coado, e a ser bebido adoçado e com leite.

A França só teve sua primeira cafeteria em 1689, o Le Procope, que existe até hoje! Lá as notícias diárias estavam afixadas na entrada, uma dama ou um cavalheiro podiam beber cafés com creme ou sem, tomar refrescantes sorvetes, comer tortas deliciosas, ver e ser vistos. Era chiquérrimo. Freqüentar cafés em Paris passa a ser um ritual social graças ao pioneiro Le Procope. Na Europa, a exemplo do Oriente, os cafés (que também, seguindo o exemplo oriental, eram freqüentados principalmente por homens, viu?) proliferam e tornam-se o foco da agitação política, cultural e social. Era nos cafés que cavalheiros de toda a Europa conversavam sobre negócios, literatura, questões particulares e, claro, suas últimas conquistas.

O primeiro café londrino abre suas portas em 1652 e os cafés, ou coffee-houses, multiplicam-se na Inglaterra no final do século XVII só perdendo sua força quando acontece a entrada do chá na Inglaterra, estimulada pelo governo do rei Carlos II, que a partir de 1660 investe pesado na promoção do chá visando intensificar o intercâmbio comercial com a Índia e a China (a maior incentivadora do chá é a mulher do rei, a portuguesa Catarina de Aragão, que gostava de seu chazinho quente com muito açúcar). O rei mantinha o preço do chá mais baixo que o do café, desestabilizando os coffee-houses britânicos (oia que besta?), o que não aconteceu no resto da Europa. Franceses, alemães, turcos, gregos e, principalmente os italianos, seguiam loucos por café.

Em 1704, a primeira máquina de torrar café tem sua patente concedida. Entre 1706 e 1726, o café, que já era plantado em Java, vai ser cultivado no Haiti, Santo Domingo, Suriname e, finalmente, Brasil. Em 1730, ele começa a ser plantado na Jamaica, graças aos ingleses. No Brasil, São Paulo e Minas Gerais começam a plantar café em 1770. Em 1750, havia cerca de 600 cafés em Paris, é o que nos ensina o Professor A. Franco em seu delicioso “De Caçador a Gourmet”.
Hum, os franceses transformaram o café em bebida matinal no século XVIII, Deus os conserve.  São os franceses, portanto, os responsáveis pelo fato de que nosso dia é suportável.

E aí, minha criança, chegamos aonde queríamos: o café nos deu este mundo, este novo mundo, onde vivemos. Tá, exagerei. Mas ele foi parte importante da construção dessa sociedade pós Revolução Industrial.

Hum, durante o século XVII, em toda a Europa, foi nas cafeterias que se fomentou o Iluminismo, assim como a Revolução Francesa. Você captou? A chegada do café à Europa foi uma revolução. Pela primeira vez, você podia sentar com seus amigos para conversar sem sair completamente bêbado. O trabalho e o café se tornaram parceiros chegados na época da Revolução Industrial por um motivo óbvio: não dá para operar as máquinas, aqueles teares enormes, nem dá para fazer contas, planejar uma escala de serviço, fazer todas aquelas dezenas de coisinhas, e coisonas, absolutamente fundamentais quando se está tentando criar um mundo capitalista. Ficar doidão o tempo todo não dá lucro – a não ser que você seja o Keith Richards. A cafeína e seus maravilhosos efeitos foram parte integrante, fundamental e decisiva da Revolução Industrial. Ela passou a ser a bebida eleita da ética protestante, daquele mundo viciado em trabalho. A recatada era vitoriana nasceu ali, meu filho, na xicrinha de café.

A primeira cafeteria londrina abriu em 1652. Em 1700, eram mais de duas mil. Eram chamadas de universidades do centavo – por um centavo, você comprava uma xícara de café e passava horas falando sobre a vida e acertando o prumo da civilização ocidental. As discussões intelectuais podiam ser sérias e profundas – afinal, estávamos todos sóbrios. A urna que conhecemos e usamos até hoje, quando as maquininhas das eleições dão pau, nasceu numa cafeteria londrina, onde os clientes podiam votar tendo seu anonimato preservado, sobre quaisquer questões que fossem discutidas. O café não foi apenas estimulante para o comércio, portanto, mas para a vida em si. Todo o final do século XVII e o começo do século XVIII baseou-se no café, girou em torno do café, foi movido a café. Que os anjos dos céus digam amém.

As cafeterias eram ninhos de mafagafos, cheios de intelectuais, professores, homens de negócios e inventores, todos eles se embebedando de cafeína. Ainda no século XVII, havia um café em Londres, o Hogarth’s, onde se davam lições de Latim para os cavalheiros presentes. Legal ou não?

Numa dessas cafeterias londrinas nasceu o jornal moderno: esse treco dividido em seções, porque as pessoas iam aos cafés, anotavam o que conversavam e ouviam, depois publicavam em panfletos que eram distribuídos. Uia, que jóia.

Ah, e por que é que eu contei tudo isto? Para explicar aos nossos amigos e familiares que, depois de horas e horas em cafeterias por este mundo de meu Deus, Pedrão e eu não reinventamos a roda, não salvamos as baleias, não escrevemos sequer um artigo a quatro mãos que prestasse e não formulamos uma teoria boa de verdade sobre o que quer que fosse, a culpa é nossa, não do café. O café faz a parte dele.

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 3 comentários

  1. Caio

    Bom dia! Foi uma tortura logo de manhã ver a foto desse café, poxa eu estou acostumado a tomar um capuccino todos os dias de manhã no trabalho, porém nesse final de semana, senti uma dor muito grande no estômago, será que pode ser devido a isso? Tenho conhecidos de gastronomia do IESB que só sabem defender o café e como lá tem credibilidade, acredito, mas queria mais opiniões hehe Obrigado e bom dia!

  2. Fal

    Oi Caio! Eu não sou médica, mas ó só, vamos perguntar pra nutricionista do OBA? beijos, querido.

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