Fala, Fal!

Fal  Azevedo e o Renascimento.

Apertem os cintos, o Papa sumiu – e outros milagres da Renascença I

O Renascimento é um período muito, muito complexo, muito importante, vasto e rico, cuja origem e cuja história, tem as mais variadas versões. Historiadores xingam-se entre si, agridem os civis que tem qualquer opinião que não a deles, os livros em português, espanhol, italiano e inglês – os únicos idiomas cuja leitura domino com graça e desenvoltura – não se entendem quanto às datas e gentes e fatos, então fiquem calmos. Falo de uma versão, de uma visão, de um caminho.

Vamos lá. Quando o século XIV começou, o que hoje chamamos de Itália estava dividido entre Sacro Império Romano-Germânico (região norte), Estados Papais (região central) e Reino de Nápoles (região meridional).

A vida seguia, éramos cidadãos medievais e tínhamos, como qualquer criatura, em qualquer época da história, a insensata certeza de que nada mudaria. Rá! – disse a vida, que, em qualquer época ou lugar, muda tudo quando menos se espera.

E assim, em 1309 nosso mundo virou de cabeça para baixo: após inúmeras desavenças com algumas famílias da Itália (feudos declarando-se fartos da vassalagem a que estavam sujeitos, aventureiros lançando mão de extensas zonas territoriais pertencentes ao Papa, demonstrações chocantes de insubmissão de ducados, declarações de independência vindas Deus sabe donde, rebeldia aberta e declarada de famílias aqui e acolá, apropriações audazes, cidades revortosas apartadas da autoridade papal, cidades como Ravena, Faenza, e Cervia sendo tomadas na maior cara de pau), famílias da França (nem me faça começar coma França e seu rei espertinho), problemas internos e externos, o Papa se muda para Avignon, na França.

Habemus Papam é o escambau. O papado se mudou para a França e não retornará tão cedo. (Foram sete os papas em Avignon, leitor, salvo melhor juízo: Clemente V, João XXII, Bento XII, Clemente VI, Inocêncio VI, Beato Urbano V, Gregório XI. Eles ficaram lá até 1378).

Sem o poder centralizador do papa e com mais algumas mumunhas, os Estados Papais, que eram os territórios na Itália que funcionavam como estado independente sob a batuta do Papa e com capital em Roma, se dividem. (o único estado Papal que sobreviveu foi o Vaticano… vamos combinar que nada mal, né?)

E se antes, como parte de um território e obedecendo a um poder centralizador, cada uma dessas cidades não tinha meios, capital ou autonomia para progredir, agora tudo havia mudado.

Os Estados Independentes são uma realidade. Mas é claro, claro, que só a saída do Papa da Itália, não ‘inventou’ o Renascimento tal qual como conhecemos e amamos.

Cidades como Milão, Gênova, Pádua, Bolonha, Veneza e Florença podiam singrar soltas pelo Mediterrâneo, contratar caravanas de comerciantes que, por terra, levavam e traziam mercadorias da África e do Oriente, podiam importar e exportar, avaliar, contratar, combinar, explorar, exibir, trocar, vender e comprar tudo o que quisessem. Mercadorias circulando, dinheiro circulando, poder trocando de mãos: fatores que hoje e sempre, em qualquer lugar do mundo, mudam o rumo da história.

Sempre bom lembrar que o caminho para essa folia pelas estradas e feiras da Europa só foi possível graças à providencial ajudinha das Cruzadas. Elas permitiram um intercâmbio imenso de cultura e produtos, reabriram estradas, reaqueceram o comércio e as cidades. Os italianos nadaram de braçada, porque tinham posição geográfica excelente pra chegar até o Oriente – controlavam o Mediterrâneo, o comércio, os preços, as condições de venda, etc. E tinham demanda para os produtos finos que levavam para casa, claro.

Lá pela metade do século XIV várias cidades italianas progrediam. O cidadão de uma dessas cidades-estado tinha muito mais chance de ter poder político, enriquecer e prosperar que o morador das propriedades rurais. O poder não estava mais concentrado nos feudos, estava nas cidades, que injetavam o dinheiro que ganhavam em si mesmas. Elas passam a ser a região mais rica da Europa.

O comércio florescia, as cidades cresciam, a burguesia punha suas manguinhas de fora. Assim, quando os turcos tomaram Constantinopla em 1476 (a data oficial do final da Idade Média) nós já estávamos na Renascença, a todo vapor. E há muito tempo.

Toda essa nova condição de vida precisava de novos parâmetros. Precisa de novos conceitos, regras e paradigmas (mesmo eu odiando essa palavra). Para poder renascer, precisamos de uma nova filosofia. De uma nova arte para expressarmos nossas novas vidas.

E foi lá, justo lá, entre esse amontoado de cidades-estado sem papa, sem diretriz central e sem compromissos – a não ser os que as próprias cidades elegessem – que começamos a mudar, como nossas vidas, como nosso jeito de viver.

O Papa, claro, não sumiu. Devo explicar minha piadinha do título antes que meus pios leitores inundem minha caixa postal de protestos e orações. Mas sua ausência forçada da Itália por 70 anos, aliada a outros fatores (muitos, vastos e importantes fatores), torna a Renascença italiana (que depois se alastraria por toda a Europa). possível. Aliás, inevitável. Amém.

Os advogados, especialmente os de Pádua e Verona, puxaram o cordão renascentista, estudando a poesia e o direto de Roma. Dos teóricos romanos o Renascimento adota o conceito de que todo conhecimento do homem deveria ser colocado à disposição dos outros, e que a vida cotidiana deveria incluir a sabedoria de cada um. Ah, a sabedoria de cada um. O indivíduo no Renascimento passa a ter importância inédita. Cada comerciante, cada artesão, cada marinheiro conta – estamos nos especializando mais e mais, dependendo muito mais uns dos outros do que o homem medieval jamais poderia sonhar.

Para equacionar uma filosofia a estes novos tempos, sai de cena o introspectivo, recluso e reservado sábio medieval e entra em cena o filósofo renascentista, um cara que circula, que freqüenta rodas de discussão e funções públicas, um cara que daria entrevista ao Amaury Jr. se tivesse chance.

A Idade Média havia nos dado a imprensa, o relógio, a roda d´água, o tear horizontal, as minas de carvão, as catedrais e a primeira produção em massa (ferraduras). Mas renascidos que éramos, tontos com nossas novas vidas e todas as suas possibilidades, julgamos esse passado recente inferior, era um pedaço da nossa história que queríamos esquecer. Talvez, como no amor, na história precisemos de certa distância para entender a nós mesmos, ao que passou e para dimensionar a importância de tudo o que aconteceu. Eu não sei. O fato é que com a Idade Média tão próxima bastava que olhássemos sobre os ombros para enxergá-la – e não gostávamos do que víamos. Não percebíamos sua doçura, suas qualidades, suas importantes conquistas. Troçamos dela e lhe pusemos apelidos (foi durante o renascimento que a Idade Média passou a ser chamada de “Idade das Trevas”). Tratamos a Idade Média com a crueldade reservada aos antigos amantes.

Para seguir em frente, o homem da Renascença precisa calçar velhos sapatos, como todos nós, precisa se apoiar em velhas premissas para criar novas bases para o novo, para o que está por vir. Mas o homem da Renascença escolhe buscar seus modelos na Antigüidade, nos velhos pensadores greco-romanos. Para conseguir seguir em frente, a renascença mergulha mais de mil anos no passado. Queríamos ser novos transformando velhos conceitos, queríamos ser corajosos usando os golpes alheios, queríamos ser visionários usando uma perspectiva reciclada para enxergar o futuro. Queríamos ser especiais.

E, Deus, nós fomos.

O homem da Renascença, verdade seja dita, não era tão diferente do homem medieval. Ou do homem de hoje. Gostamos e queremos sempre as mesmas coisas: conforto, segurança, certa dose de realização pessoal, comidinha boa e filhos felizes e saudáveis.

Mas, se nós ainda éramos basicamente os mesmos de sempre, a vida em volta de nós mudava sem parar.

Os pobres, do campo e da cidade, continuaram vivendo miseravelmente durante o Renascimento. Mas a realidade da burguesia começava a mudar. Suas vidas floresciam agora que o lucro podia ser praticado. A busca por novos negócios e mercados consumidores traz mais informações, novos hábitos e aumenta a oferta de produtos para esta classe social – que tinha os meios financeiros para obtê-los.  A burguesia italiana cria uma nova civilização urbana.

Já no século XIV, as casas burguesas serviam como moradia e local de trabalho. A frente da casa era reservada para uma loja ou oficina. Com a especialização das profissões durante o Renascimento, é cada vez mais comum que se viva e trabalhe no mesmo lugar. A parte reservada para morar era um grande cômodo único, geralmente sem forro, onde se comia e dormia. Essa noção de privacidade que temos, cada um num quarto, o casal dormindo separado do resto da família, é coisa muito recente. Assim como é recente essa moda de destinar a cada cômodo uma função – sala de jantar, sala de estar, sala de música, banheiro dele, banheiro dela, área de serviço, jardim de inverno. Nada disso existe para o homem da Renascença. Todos vivem, comem e dormem juntos.

Juntos? Juntos.

O senhor e a senhora, as crianças, os criados e o primo Valtão que estava de passagem – todos dormem na mesma cama, no cômodo onde acabaram de jantar.

E já que estamos fofocando e falando em jantar, vamos ao que interessa, antes que o belo chef Baumel me dê um beliscão: o que comíamos nós durante o Renascimento?

Bão, com as viagens, o comércio e o intercâmbio, as cidades italianas puderam manter o gosto medieval pelas especiarias e até incrementá-lo.

As rotas comerciais mantinham nossos heróis abastecidos de laranjas chinesas, café e açúcar árabes, limões e bananas da Índia e sabe Deus o que mais. Com tanta coisa chegando, o preço de tudo se torna um pouquinho (eu disse “pouquinho”) mais acessível, e mais pessoas podem provar novos ingredientes, novos pratos. A quantidade de receitas aumenta. O novo, o diferente deixa de ser temido. A gente tem que ter em mente que essa revolução culinária não estava isolada no Renascimento. Tudo estava mudando, velhas questões eram abordadas de novas maneiras. Grana sobrando, querido leitor, nunca subestime o poder transformador da grana sobrando.

Uma invenção medieval, a imprensa, possibilita que o homem da Renascença registre o que ele anda fazendo. Livros de receita aparecem aqui e acolá. Os prazeres do paladar passam a ser permitidos, ainda que com recomendação de parcimônia.

Os renascentistas redescobrem a Antiguidade Clássica e querem revivê-la em todas as áreas, inclusive na comida.

Quando, em 1498 (segundo o pesquisador e escritor R. Strong, autor do delicioso Banquete), a primeira edição da obra de Marcus Gavius Apicius, De re coquinaria reapareceu na Europa, foi uma grita geral. Apicius foi o um gourmet romano que no primeiro século desta era ensinava culinária enquanto Roma era governada por Augusto e por Tibério. Ele era um cara famoso, escreveu dois livros de culinária, criou uma porção de pratos e tinha uma escola de culinária também.

De re coquinaria é uma coleção de receitas compiladas por diferentes pessoas, a partir de, supõe-se, o século III. O que quer dizer que ali tem muita coisa de Apicius e muita coisa que pode ser de Apicius. E mesmo assim, a compilação quase não fala de doces ou de pastelaria, que eram pontos importantes na mesa romana. Temos muita coisa, portanto, mas falta um tanto.

O homem renascentista ficou louco pelos escritos de Apicius, louco por reconstruir a culinária clássica ou que se supunha ser a culinária clássica.

Apicius era a redenção para os renascentistas: fora com os resquícios dos jejuns medievais, com o sentimento de culpa por ter prazer com a comida e regulações variadas. Apicius traz de volta os pratos rebuscados, trabalhosos e, por que não, experimentais da Antigüidade. Strong, coberto de razão, declara que o Império Romano teve a “primeira cozinha internacional da Europa Ocidental” e era isso mesmo que os renascentistas queriam. Teoricamente, os romanos eram simplistas. Imperadores como Augusto eram especialmente incisivos em seus discursos sobre a necessidade do romano permanecer firme junto à família, a terra, ao lado puro e natural da vida. Mas, na prática, na cozinha do dia a dia, era raro o alimento que não tinha seu sabor alterado por meio de molhos (inclusive molhos doces em carnes e pastelões), ervas, ovos, misturas de carnes e vegetais variados.

Alterar o sabor e o jeitão dos alimentos era o barato dos romanos e os renascentistas entraram nessa, de rabinho abanando. Trufas, peixes de água doce e salgada, frutos do mar, aspargos, cebolas, alcaparras, miúdos do porco e do boi: o que era bom para os romanos era bom para nós. Mas algumas dessas cousas não eram usadas na Idade Média? Eram sim – mas com a descoberta da culinária romana, os renascentistas revestiram esses trecos de glamour.

Os renascentistas tinham rituais, normas, procedimentos a seguir. Eventualmente, toda essa sofisticação levou ao uso de menos especiarias. Os alimentos preparados tornaram-se mais sutis. E mais, o pintor e o escultor, que na Idade Média eram artesãos, no Renascimento tornam-se artistas. Isso afetou o pessoal da cozinha. O bom cozinheiro, o grande chef, vira artista também. A culinária passou a ter sua casta, seus veneráveis, seus maestros. Scappi, Pidoux, Martino e Sacchi, só para citar os italianos. Além disso a etiqueta também sofreu alterações e teve seus papas, autores como Della Casa e Castiglione.

Além das guloseimas do Oriente, vindas através das cidades italianas, as novas terras da América começaram a despejar na Europa, através de Portugal e Espanha, feijão, batata, tomate, abóbora, abacate, abacaxi, pimentão, amendoim, milho, baunilha, mandioca e, claro, cacau.

Os europeus não sabiam achar a América no mapa, não entendiam como viviam os povos americanos e não respeitavam suas crenças, mas adoraram sua comida.

Alguns ingredientes, como a batata, encontraram maior resistência, mas no final todos foram apreciados e consumidos, e alguns, como o milho ou os tomates, mudaram a cara da cozinha regional de diversos lugares, integraram-se às culturas regionais e foram assumidos de tal forma que nem dá para acreditar que não são usados por aqueles povos desde o começo dos tempos. Dá para imaginar a culinária italiana sem tomate?

Trocando informação, receitas, mudas de plantas e sopapos, seguimos do século XIV ao XVII cheios de fome e de curiosidade. E por que não devíamos fazer isso? A gula não era mais pecado. Quer dizer, era. Mas gente fingia que não.

Passe o sal, querido leitor. Mais Renascimento na próxima vez.

RECOMENDAÇÂO URGENTE DE LEITURA:

 

Banquete, de R. Strong. Você jamais vai se arrepender de devorar esse livro, juro. E de nada.

 

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 9 comentários

  1. tereza

    Fal, adoro ler seus textos de história,adoro! São sempre divertidos e interessantes.bjs.

  2. Eduardo Almeida Reis

    Todo e qualquer texto produzido pela senhora Fal Azevedo é imperdível. Só isso: IMPERDÍVEL.

  3. flavia

    Gente….sonho com aulas de historia desse jeitimm….bju Fal

  4. vera

    fal, a gente acha que está ouvindo falar de comida e vai ver é tudo história. só voce pra misturar isso tão bem. beijos

  5. Menina Eva

    Nossa, que aula mais saborosa. 😀

  6. Milady Carol

    Que delicia de texto! A Idade Média é mesmo castigada, pobrezinha… E é como você diz: certos alimentos foram integrados tarde nas culinarias europeias mas viraram basicos inevitaveis: culinaria italiana sem tomate, culinaria francesa sem batata??? Imagine so 😀

  7. Adriana Alves

    Fal Azevedo, que surpresa boa te encontrar por aqui… Te acompanho no drops da Fal e adoro seu jeito espontâneo de escrever.

  8. Solange

    Noooossa, adoro os textos de história da Fal.
    (E me deu uma saudade da coluna do Apicius no JB, alguém lembra?)

  9. Nalu

    Que saboroso ler isso.

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