Para Lígia.

Fal Azevedo… emocionante!!

Eu escrevo para a Lígia

Eu escrevo para a Lígia. Eu não escrevo para a Lígia, mas escrevo primeiro para ela. É o olhar dela que eu busco, É o olhar dela que eu busco, antes de tudo. A Lígia é minha amiga íntima. E é também minha digitadora. A primeira pessoa que pega em qualquer trabalho meu. Eu preciso fazer a Lígia chorar. E sentir fome. E rir. Principalmente rir. Eu uso, de propósito, termos que ela acha graça, como ‘eu físico’, ‘esse assunto não é da minha calçada’ e ‘não inflói, nem contribói’. Se ela não gostar, ninguém mais vai gostar. Depois de decifrar meus garranchos, a Lígia torna meus pensamentos reais. Eu vivo perguntando para ela, no meio das frases, se ela gostou, se faz sentido, se o plural está certo, se ela gostou, se é com “ss”, se a palavra existe, se ela gostou. Eu sempre quero saber se ela gostou. Eu preciso que ela goste do que eu faço, eu preciso que ela goste antes, preu saber do que eu gosto.
Eu falo com a Lígia, duas, três vezes por semana, desde que nós nos conhecemos. E nunca, nunca é o suficiente. E os e-mails? Às vezes são dez no mesmo dia, uns de rir, uns de chorar, uns de pensar e ir na terapia discutir e inda ouvir o doutor Luiz Estevão dizer “Essa sua amiga é uma danada, né?”.
A Lígia é amiga da minha casa. É aqui que ela fica quando vem pra São Paulo, senão, nossa, o mundo acaba, eu belisco a Lígia se ela não ficar aqui. Meu marido tinha loucura e devoção por ela. Ele a chamava de ‘Lúcia Flávia – a passageira da letargia’, e ela o chamava de ‘Adamastor – como direi… o patrão’. E eles falavam das crianças que eles tinham nesse mundo paralelo, se o moço da geladeira tinha ido na casa deles resolver o problema de pinga-pinga, se ele queria bife para o jantar. E eles riam tanto, tanto. Quando o meu marido morreu, a Lígia me ligou. E ficou meia hora quieta, muda no telefone. Eu não conseguia chorar mas a Lígia chorou por mim. Ela chorou por mim. E o choro da Lígia limpou minha alma, meu olhos, clareou minha dor. E o choro da Lígia no meu ouvido, tão puro, tão sentido, tão sincero, tão doído, foi tudo o que eu tive. Eu não tinha nada, futuro, visão ou perspectiva – continuo não tendo – mas eu tinha a Lígia e seu choro e sua dor, que legitimavam tudo o que eu havia sido nessa vida. Depois dessa meia hora, ela desligou o telefone, dormiu um pouquinho, veio para São Paulo e ficou comigo enquanto meu marido partia. Ela veio para a minha casa e lavou a louça. Segurou a mão da minha mãe. E se sentou ao meu lado, em silêncio, até a hora de ir embora de novo. A Lígia é uma mulher que sabe mesmo como ficar em silêncio. Só seus amigos de verdade ficam em silêncio junto de você e dizem tanto.
A Lígia nunca me disse que eu ainda ia sofrer muito. Que minha vida nunca mais seria a mesma. Que a vida é uma batalha. Que meu marido virou um anjo ou qualquer coisa dessas, que magoam profundamente quem perdeu alguém, ainda que o objetivo não seja o de magoar. A Lígia só me diz ‘nós vamos dar um jeito’. E diz também ‘tudo vai melhorar’. Sou profundamente grata à Lígia.
A Lígia me escreve cartas. Longas cartas em papel de fichário de florzinhas e menininhas, longas cartas sobre tudo, sobre a vida, sobre o que virá. Eu gosto da Lígia. Ela é tudo que eu deveria ter sido. Mas não pude. Eu nunca fui capaz. Faltou disciplina. Talento, coragem. A Lígia tem dois filhos maravilhosos. Uma geladeira chamada Jurema. Um plano. A Lígia tem um plano. Às vezes ela me liga chorando às duas da manhã, porque ela acha que não tem um plano, mas ela tem sim. A Lígia tem uma carreira. Uma carreira. E vai ter outra. É para ela que a mãe dela liga, apesar dos pesares e das pinimbas que toda relação tem. E as cunhadas. Ela também ligam para a Lígia. A sogra. Elas ligam para a Lígia para uma receita nova, um conselho secreto, para decidir o cardápio do Natal, para bater perna no centro, para um cafuné. A Lígia tem dúvidas. A Lígia tem dias ruins. Mas nada a paralisa, ainda que ela ache que sim. Ela está seguindo em frente a cada dia. Ela não sabe, mas eu sei, eu vejo. Assim como ela não sabe o quanto é bonita – que seu cabelo é lindo, que seu nariz é uma benção, que seu corpo é bonito, que seus olhos e sua pele são maravilhosos – ela é incapaz de ver, dia a dia, os avanços que faz. E que são tantos. Ela segue em frente. Eu gosto de gente que segue em frente. Eu gosto muito da Lígia. .
Eu amo a Lígia como poucas, muito poucas vezes eu amei na vida. Posso contar nos dedos da mão quem já amei como amo a Lígia. Ela é meu norte e a melhor parte de mim. Ela é minha irmã, minha melodia mais querida, e que Deus me perdoe a rima idiota, meu talismã. A Lígia afasta o frio, o medo, a chuva, a dor e derrete a neve que prende a minha patinha.
A Lígia encara a cozinha com a mesma filosofia que encara a vida. Ela vai lá e faz. Ela bota fogo no pano de prato. Ela bota sal no suco. Ela faz esfihas maravilhosas. E seu camarão na moranga é redentor. A Lígia assa coxas de frango e desmaia com o calor da cozinha. Em cima do microondas, a Lígia tem uma coleção de galinhas d’angola. Ela as chama de gongolinhas.
E antes de revelar as receitas da Lígia, devo acrescentar que ela embala a louça, toda a louça da amiga que perdeu a casa, o amor e a vida, sem titubear. Sem chorar na frente da amiga. Jornal, plástico bolha, caixas de papelão e fita crepe. Abraços e manteiga de alho.
E num domingo que não aconteceu, num julho que nunca existiu, sol, bairro da Liberdade, potes de cerâmica branca e azul, óculos fundo de garrafa, cabelo lisinho, blusa vermelha.

Eu? Eu escrevo para a Lígia

(esse texto foi digitado pela minha querida Lígia em dezembro de 2007, semanas antes de seu falecimento. Ela digitou e me ligou chorando, “Ah, Fal, que lindo…”. E eu não disse nem a pontinha do que deveria ter dito a ela, do quão importante ela foi para mim. Sinto falta dela todos os dias, de várias formas, penso nela todos os dias, a cada letra, a cada palavra que não sei soletrar, a cada boa piada que faço, a cada piada terrível que faço, em cada copo de suco de uva, a cada passo que dou. Seguem as melhores receitas que ela me deu, com os comentários dela)

Creme de cenoura com gengibre e mel da Lígia

500 g de cenoura picada em cubos (umas cinco ou seis cenouras médias)
1/2 cebola grande picada
1 dente de alho
2 colheres (sopa) de talos de salsão picado
1/2 colher (sopa) de gengibre ralado
1 colher (sopa) de manteiga
1/2 litro de caldo de legumes (um cubo ou envelope)
2 colheres (sopa) rasas de mel
1 folha de louro
sal e pimenta-do-reino a gosto

Ferva a água e dissolva o caldo de legumes (eu usei de galinha, de saquinho, que não tem gordura).
Coloque a manteiga numa panela grande e leve ao fogo médio para derreter. Em seguida, junte os cubos de cenoura, a cebola, o alho, o salsão e o gengibre. Misture bem.

Tempere com sal e pimenta-do-reino, misture e tampe a panela e deixe em fogo baixo por uns 15 ou 20 minutos, mexendo de vez em quando com uma colher de pau. Vai cozinhar tudo na água que se solta dos vegetais.

Junte o caldo quente, acrescente o mel e deixe cozinhar por mais 10 minutos.

Retire a folha de louro com a ajuda de uma colher. Com cuidado, transfira a sopa para o liquidificador e bata até obter uma mistura homogênea. Depois, passe a mistura por uma peneira, colocando a sopa de volta na panela para reaquecer.

De longe os melhores cookies com gotas de chocolate

2 xícaras de farinha de trigo
1 colher (chá) de sal
1 colher (chá) de bicarbonato de sódio
225g de manteiga sem sal (dois tabletes ou uma xícara)
¾ de xícara de açúcar mascavo claro, firmemente prensado
¼ de xícara de açúcar mascavo escuro, firmemente prensado
¾ de xícara de açúcar
1 colher (chá) de essência de baunilha
2 colheres de água
1 ovo*
¾ do pacote ou ½ xícara de Nestlé Toll House Semi-Sweet Morsels.

Preaqueça o forno a 190º. Numa tigela, misture a farinha de trigo, o sal, o bicarbonato. Bata a manteiga na batedeira te ficar cremosa e junte as três qualidades de açúcar. Adicione a essência de baunilha, a água e os ovos*, e bata tudo junto. Acrescente, sempre batendo, a mistura de farinha de trigo. Junte as gotas de chocolate. Pingue em forminhas redondas antiaderentes com uma colher de chá. Asse por cerca de 10 minutos. Ponha sobre uma grade para esfriar.

Vamos lá:
.Note que ele pede um ovo e nas instruções manda adicionar ‘os ovos’. Usei um só, médio, talvez fosse um ovo grande ou dois pequenos, sei lá.
.Medidas sem especificação são xícaras de chá e colheres de sopa, percebi.
.Só tinha açúcar mascavo escuro e foi assim mesmo, uma xícara. Não deixe de peneirar o açúcar comum e o mascavo, que costuma ter grumos grandes, e a farinha tb.
.Usei um tablete de manteiga de 200 g.
.Claaaro que eu nem sei o que é o Toll House, fui de barra ao leite comum, picada, mas olhe, use uma barra inteira de 170g, pois achei que meia xícara é pouco chocolate pra festa. Eu queria o meio-amargo, mas o Ti bateu o pé e me venceu.
.Bati a manteiga já amolecida, segurando a batedeira na mão, é mais fácil. O Tiago foi juntando os ingredientes pra mim.
.A massa fica feia, suspeita. Apesar de ir muita manteiga, mesmo assim eu untei as assadeiras e fomos colocando montinhos espaçados. Achei que não precisa untar nada, é só colocar os montinhos.
.Os montinhos suspeitos vão derreter, se espalhar redondinhos por uns quatro ou cinco cm, dependendo do tamanho. Se você fizer como eu, deixar pouco espaço entre os montinhos, eles se juntarão, solidários, e ficarão um horror. Assim que as beiradinhas secarem no forno (fique de olho!!!) tire do forno, mesmo que em cima ainda esteja fofinho ao toque: os biscoitos vão secar assim que esfriar.
.Experimentei colocar um pouco em forminhas de pão de mel sem untar e os cookies ficaram uniformes, e mais gostosos, eu achei.

Agora eu entendi porque usar grade pra secar biscoitos: pra não ficar com o fundo ligeiramente borrachento. Hm. Mas eu não vou comprar grade pra biscoito, meu marido se divorciaria de mim.

Guardei os bichinhos em latas, dizem que conserva melhor.
Estou agora, às 8:30 h, digitando e comendo um deles, e está mil vezes melhor que ontem. Hmmm.

O Jeffrey diz que esse é o mínimo que se pode esperar de um cookie, e que você pode e deve aperfeiçoar a receita.

Agora eu vou fazer meia receita dividir e usar passas, paçoca esfarelada (veja se eu presto), nozes picadas etc. e vou contando aqui como ficou, enquanto minhas calças vão, inexplicavelmente sufocando minha cintura.

Amor, sua Lígia.

Minha querida Falzinha…eu chorei!

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 12 comentários

  1. fal

    eu tb choro muito, chef, qd leio isso. ela foi uma grande pessoa, sabe? a vida ficou bem menor sem ela.

  2. Lana

    Fal, depois de terminar de ler o livro Amor da Toni Morrison, fiquei pensando nas amizades, nas coisa não ditas, na minha melhor amiga que perdi em 31 de dezembro de 2006. E chego aqui e me deparo com esse texto maravilhosos! bjins.

  3. Eita Fal, chorei lendo este texto Fal!! Até eu q não conheci a Lígia senti saudade dela…!! Os comentários dela são o “Ó”!!!heehhee Bjus

  4. Stella

    Faço minhas as palavras da Carolina, pelo menos por enquanto.

  5. Joseane

    Sempre leio teus textos, amo e comento… Mas esse particularmente, pra mim que gosto de chorar (disfruto mesmo, tenho alma melancólica!) me tocou profundamente, chorei, e chorei com vontade, de soluçar…

  6. flavia

    Sem palavras…..emocionante, como sempre!

  7. dalva

    A Lígia era muito especial. O que é bom dura pouco…

  8. dra_luluzita

    Que luxo essa amizade, esse sentimento! Parabens pra vc que teve esse presente , essas licoes de amor na vida, fal.
    Parabens pra mim, que ganhei voce 🙂
    Beijocas derretidas de acucar e manteiga
    Lulu

  9. Fal, esse seu texto me fez ficar em silêncio. Desses que só amigos sabem fazer, como você bem o disse.
    Ano passado perdi a minha Ligia e até hoje tenho longos dialogos com ela, quando o coração aperta, quando o sorriso sobra…
    E te lendo hoje percebi o quanto sinto falta dela e dos seus silêncios.

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